quinta-feira, 9 de abril de 2009

Tragédia no Sertão do São Francisco



“Vida, Paixão e Morte do Velho Chico”. Com a firmeza em repetir: “espetáculo”, embora o competente e talentoso diretor, Hertz Félix, tenha se reservado a rotular a Via Sacra como espetáculo, nós entendemos que a própria trajetória em vida do Filho de Deus, e todos os grandes acontecimentos da humanidade nos últimos séculos são denominados “espetáculos”; assim como episódios épicos, eloquentes, grandes fatos históricos, heróicos, e principalmente quando se trata de eventos provocados pelas potências religiosas, como foram os casos da Santa Inquisição e do horror do Holocausto; espetáculos de fanatismo, genocídio e psicopatia, gerados pela intolerância, omissão e submissão da igreja.
Juazeiro e Petrolina estão de parabéns! Os últimos espetáculos sacros montados nas duas cidades são dignos de aplausos. Artistas que fazem a cultura na região novamente inovaram e surpreenderam a todos com uma excelente produção teatral, desde a cenografia, passando pelo glamour criativo dos figurinos, até as belíssimas cenas em atuações memoráveis. Adolescentes do programa Agente Jovem, e senhoras do Clube da Maior Idade, Viver Juá, foram, na verdade, os principais contemplados com a peça, onde tiveram a oportunidade de participar de importante manifestação cultural, ano passado em Juazeiro. E não somente nesse espetáculo a inovação surpreendeu. Em 2007 à montagem também foi excelente, bem econômica, simples, mas de uma autenticidade cênica surpreendente, com belos figurinos e coreografias bem trabalhadas.
Velhas temáticas para novas vias-sacras. E assim a cidade respirou outros ares culturais desde 2007, quando foi muito bem trabalhado o tema: “Gigante Precoce, Frágil Retirante”, baseado na obra da escritora Gildete Lino de Carvalho, e com fragmentos de “Morte e Vida Severina”, do escritor João Cabral de Melo Neto, e “O Quinze”, de Raquel de Queiroz. Aquele espetáculo teve um desfecho cênico louvável, levando ao palco uma das manifestações religiosas mais importantes da igreja católica, que é a Festa do Divino Espírito Santo. Religiosas com figurino em vermelho e branco encerraram a peça com bandeiras, cantando “Devotos do Divino”, música dos compositores Ivan Lins e Victor Martins.
Tragédia no Sertão do São Francisco. Uma oportuna e bem feita crítica social, numa visão shakespeariana repleta de nordestinidade. Assim definimos o grande achado do diretor do espetáculo sacro, Hertz Félix. Com sua sensibilidade e astúcia cênica levou ao palco uma das mais belíssimas parábolas dos tempos atuais, ousando mexer numa ferida aberta, e nas vaidades políticas de nossos representantes. “VIDA, PAIXÃO E MORTE DO VELHO CHICO”, uma deliciosa abordagem, para uma reflexão além da cena. Usando de elementos folclóricos distintos, característicos de nossa região, a montagem atual supera a anterior, em qualidade técnica, produção, enredo e elenco. Inclusive a idéia de um palco aberto, defronte a catedral de Nossa Senhora das Grotas, em Juazeiro ano passado, a padroeira vigilante do concerto teatral primoroso e de grande força cênica. Este ano o espetáculo foi para Petrolina, montado na concha acústica, reafirmando o propósito de seu enredo: a entrega de um rio santo aos seus destruidores.
Grandes momentos como a dança dos índios Cariris em volta da Serra da Canastra, a mãe Maria do Velho Chico; o Terno de Reis, com as senhoras do Clube da Maior Idade, saudando a vinda do Salvador, isto é, do Rio Chico, e o cordão dos Penitentes em vigília ao sofrimento e condenação à morte do Rio-Cristo. Tudo bem orquestrado dentro do contexto da Semana Santa, sem perder a religiosidade do período e valorizando nossas manifestações culturais, quase ameaçadas de extinção. A parábola inteligente, embora provoque polêmica na sociedade, angustiada por fatos históricos não transformáveis, é também didática, uma forte fonte de pesquisa para estudantes da região. Exemplo disso são os “apóstolos” do Rio São Francisco, seus principais afluentes, dos estados banhados pela imensa água doce, como Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe.
E na cena da traição, onde estão os verdadeiros traidores? Seus ribeirinhos, filhos deste chão, apesar de poluírem suas águas, não alcançam o poder maior de “trinta dinheiros” oferecidos aos verdadeiros criminosos do Rio-Cristo. Será que somente os poluentes e aqueles que poluem o seu leito e suas águas, induzidos pela má educação que recebem de seus representantes, são os “traidores”? Ou os fariseus, chefes dos sacerdotes e doutores da Lei dos tempos atuais, mandatários de nosso país, forjadores de pesquisas, manipuladores de opinião, e detentores de mídia, cujo principal objetivo é o resultado das urnas, sejam elas em pleitos ou plebiscitos, comprando votos por “trinta moedas de prata”, para o convencimento da transposição, desvio das águas do Velho Chico, semelhante à entrega e condenação de um homem santo? Este sim, o verdadeiro capítulo da traição.
A imponente montagem sacra também teve seus pecados. Esqueceu-se de Pedro, o mais vaidoso dos 12 discípulos, e de grande importância no desfecho da condenação do Cristo-Rio ou do Rio-Cristo, e entre tantas traições, lá estava Pedro feito pedra, insistente em suas declarações. Os “pedros” de hoje são muitos, negando a Cristo, autorizando a sua morte, autorizando a transposição do Rio. Os mesmos que antes condenavam a obra, agora defendem sua execução. Lembram desse capítulo? Pedro conhecia Jesus, conhecia o seu projeto, o projeto de Deus, e o defendia como fiel escudeiro. Mas, após a condenação do Cristo foi o primeiro a negá-lo, e numa semelhante ironia com o projeto político do Governo Federal, “Revitalização/Transposição”, os “pedros” de hoje fingem não conhecer Jesus, como também eles fingem não conhecer o mais brasileiro dos rios, e o projeto de transposição, negando-o por três vezes, antes de o galo cantar duas vezes; e assim se registra hoje com o Rio, três tentativas de desvio de tuas águas em três gestões de governo, antes mesmo de duas manifestações de fé, sinal de amor pela vida do Velho Chico, através de um “galo” chamado Dom Luiz Cappio.
Assim como o Rio, Jesus veio revitalizar o seu povo, trazer esperança, renovação. Mas, ao contrário do Rio, Jesus se deixou morrer; não foi vencido, mas venceu! As parábolas coincidem, mas as profecias se confundem. Homem e Rio, personagens antagônicos de uma mesma história real. De certo um ótimo argumento e uma excelente encenação, mas faltou uma visão crítica mais aberta e imparcial. A verdade é que o Rio São Francisco vai continuar a caminho do calvário: “Em tuas mãos entrego o meu destino”.
A pergunta que fica é se o Velho Chico ressuscitará ao terceiro dia, isto é, ao terceiro ano, em 2010, data prevista para o término das obras de transposição de suas águas.


Paulo Carvalho (SPO)
*escritor, funcionário público municipal, crítico teatral, e atualmente escrevendo o seu primeiro livro de crônicas: “Juazeiro de Tantas Sombras”. plugadonovale@hotmail.com



Foto:Josélia Maria (Concha Acústica)

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